Após ter sido afastado preventivamente, o professor de Direito e juiz do trabalho Marcos Scalercio “não tem mais vínculo nenhum com a instituição”, informou o Damásio Educacional, por meio de nota.
A divulgação ocorre após alunas do cursinho, advogadas e uma funcionária da Justiça do Trabalho acusam-no de assediá-las sexualmente. Naquela ocasião, ao menos dez mulheres diziam ter sido assediadas por Scalercio entre 2014 e 2020.
O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o Ministério Público Federal (MPF) analisam três dessas denúncias contra o magistrado e professor, respectivamente, nas esferas administrativa e criminal. Os dois procedimentos estão em sigilo.
Depois da repercussão do caso nas redes sociais, o Me Too Brasil, que tem parceria com o Projeto Justiceiras, recebeu mais 61 relatos de possíveis vítimas de Scalercio. Os órgãos, que prestam assistência jurídica gratuita a vítimas de violência sexual, encaminharam 20 desses casos para as autoridades competentes avaliarem.
O Damásio não informou, entretanto, se foi Scalercio que pediu desligamento, se foi o cursinho que o demitiu ou, ainda, se a decisão foi de comum acordo entre o professor e a instituição. “Informamos que o docente não tem mais vínculo nenhum com a instituição”, informa um dos comunicados do Damásio. “A Administração informa que o professor não faz mais parte do quadro de docentes da instituição.”
Na segunda, o cursinho havia informado que afastou Scalercio das aulas até que o caso fosse “esclarecido e concluído”. Mas, na quinta (18), a instituição informou, sem dar mais detalhes, que ele não integra mais a equipe.
“O docente não atua mais em nossos cursos. Infelizmente, a instituição não pode passar informações detalhadas sobre esse processo”, respondeu o Damásio ao ser questionado pela reportagem sobre como ocorreu o desligamento do professor.
A defesa de Scalercio também não havia comentado o assunto até a última atualização desta reportagem. Na terça, o magistrado pediu férias do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), onde trabalha como juiz substituto.
Nesta semana, ex-alunas do Damásio Educacional usaram as redes sociais para dizer que, pelo menos desde 2016, já haviam procurado o cursinho e denunciado Scalercio por comportamento inadequado. Entre as queixas relatadas estavam convites do docente para sair com as estudantes e envios de mensagens inapropriadas com conotação sexual para as redes sociais delas. Segundo as ex-alunas, quem recusasse as investidas do professor sofria retaliações no curso. O g1 conversou com algumas das mulheres.
O Damásio sempre negou que soubesse de casos de assédio sexual envolvendo o professor e alunas dos seus cursos preparatórios para concurso público e para a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O cursinho não respondeu ao g1 se havia queixas sobre comportamento inadequado dele com estudantes que tenham sido encaminhados pessoalmente a funcionários.
“A instituição ressalta que não recebeu manifestação de estudantes em seus canais oficiais”, informou o Damásio por meio de nota divulgada nesta terça por sua assessoria de imprensa. “Os Canais Oficiais são: Ouvidoria e Fale Conosco. Ambos estão disponíveis no portal da Instituição.”
“O professor Marcos Scalercio estava com conduta inadequada nas redes sociais, no caso, misturando a parte profissional com a pessoal, e isso estava me constrangendo nas aulas, em vê-lo aos sábados”, disse na terça (16) ao g1 uma ex-aluna do Damásio sobre a denúncia que ela afirmou ter levado ao conhecimento de um funcionário da secretaria do cursinho em 2018. “Ele pediu desculpas e disse que isso seria averiguado.” Mas a resposta nunca veio.
“Depois deixei o curso e fui para outro”, disse a ex-aluna, que contou não ter tido consciência à época de que havia sido vítima de assédio sexual. “Hoje sei que fui assediada por ele.” Segundo a mulher, que se atualmente trabalha como modelo, Scalercio passou a procurá-la depois que ela postou uma foto do professor na rede social dela e o marcou, elogiando suas aulas.
“Ele me procurou no Instagram, passou o celular dele, e ali mesmo já começou dizendo coisas como se eu curtia beijos no corpo todo, perguntava se eu era santinha ou safadinha. Dizia que gostava de preliminares”, falou a ex-aluna. “Me sentia constrangida e invadida até pelo linguajar.”
O caso
As denúncias de assédio contra o juiz começaram em 2014, mas só passaram a ser discutidas entre as mulheres a partir de 2020. Primeiro pela internet, quando vítimas que não se conheciam começaram a citar o nome de Scalercio em pelo menos dois grupos fechados de discussão voltados a concursos públicos para mulheres. Elas o definiam como assediador sexual.
Origem da hashtag ‘Me Too’, usada no Twitter por mulheres que sofreram violência sexual
Duas das três mulheres que decidiram levar à Justiça as denúncias de assédio sexual contra o magistrado relataram ao g1 e à TV Globo detalhes da abordagem, segundo elas.
“Ele ficava falando de me levar livros até a minha faculdade e um dia simplesmente apareceu. Entrei no carro dele e nós fomos numa cafeteria próxima ao local, quando ele tentou me agarrar”, afirmou uma delas, que foi aluna dele no cursinho Damásio em 2014.
Uma outra vítima, funcionária do Tribunal Regional do Trabalho (TRT), contou em entrevista à TV Globo que foi agarrada e beijada à força por Scalercio dentro do gabinete dele no Fórum Trabalhista Ruy Barbosa na capital, em 2018.
“Ele se levantou, veio perto da minha cadeira, se apoiou na minha cadeira e começou a tentar me beijar, me assustei e fui para trás com a cadeira. Mas ele forçava todo o corpo pesado nos meus braços, até que teve uma hora que ele fez menos força, e eu consegui me desvincular. Ele tentava me beijar e falava que ‘sabia que eu queria’ e, como não tinha câmeras no gabinete, eu podia ficar tranquila”, afirmou a vítima.
Mais denúncias
Uma advogada de 29 anos afirmou na segunda à TV Globo ter sido estuprada por Scalercio. A mulher, que prefere não ser identificada, contou que procurou Scalercio para aconselhamento profissional em 2017 e aceitou tomar um café com o juiz que, na época, atuava no Fórum da Barra Funda.
Ela afirmou que ele foi encontrá-la com o carro dele, mas ao invés de seguirem para uma cafeteria, o juiz a levou para um motel. “Ele me agarrou com muita força, ele não conseguia tirar minha roupa. Ele teve relações comigo à força e eu fiquei cheia de hematomas pelo corpo.”
Segundo Luanda Pires, diretora de relações institucionais do Me Too Brasil, o número de vítimas que acusam o magistrado por assédio pode ser maior. “A gente já sabe de muitas outras vítimas, que ainda não estão dispostas, não têm condições ainda de falar sobre, mas a gente já sabe de outras mulheres. A sociedade brasileira naturalizou esse crime, entendendo esses atos como ‘cantadas’.”
Assédio sexual é crime no Brasil. Pode ocorrer em um contexto em que há relação hierárquica entre o agressor e a vítima, no qual ele a constrange, geralmente no ambiente de trabalho, seja usando palavras ou cometendo ações de cunho sexual, sempre sem o consentimento da pessoa, como um beijo ou um toque forçados, por exemplo.
Pelo fato de os membros da Justiça do Trabalho terem competência federal nas suas atribuições, eventuais violações cometidas por eles são apuradas por órgãos federais. Se for considerado culpado no âmbito administrativo, o magistrado poderá ser exonerado do cargo, suspenso, afastado ou advertido. No aspecto criminal, condenados por assédio sexual podem ser punidos com até dois anos de prisão.
A Corregedoria do CNJ deverá analisar futuramente se abre um Procedimento Administrativo Disciplinar (PAD) contra o juiz ou se arquiva o caso. Em São Paulo, a Corregedoria do Tribunal Regional do Trabalho já arquivou as acusações contra Scalercio alegando insuficiência de provas.
Íntegra da nota da defesa de Marcos Scalercio
“Os profissionais responsáveis pela tutela jurídica do Dr. Marcos Scalercio vêm a público, diante das notícias recentemente veiculadas acerca de supostas condutas praticadas pelo magistrado em epígrafe, esclarecer o quanto segue:
As acusações que são feitas em face do Dr. Marcos Scalercio já foram objeto de crivo e juízo de valor pelo órgão correcional e colegiado do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região. O Dr. Scalercio foi absolvido pelo tribunal e o caso foi arquivado. Foram ouvidas 15 testemunhas no processo. O arquivamento portanto demonstrou que o conjunto probatório, obtido no exercício do contraditório, é absolutamente insuficiente para dar lastro em qualquer dos fatos relatados.
É de se esclarecer que a passagem do caso pelo CNJ – Consellho Nacional de Justiça, é etapa natural de qualquer expediente em que se delibera pelo arquivamento no âmbito regional. Não se trata, portanto, de nova investigação, até mesmo porquanto inexistem fatos novos. Também é preciso esclarecer que o Dr. Scalercio não responde a qualquer resvalo na esfera criminal, sendo inverídica a informação que parte do pressuposto que o magistrado está denunciado criminalmente.
Uma vez mais, reitera-se o compromisso deste magistrado e seus advogados com a apuração da verdade dos fatos e seu respectivo contexto, na lógica do devido processo legal. O Dr. Marcos Scalercio é profissional de reconhecida competência e ilibada conduta pessoal, quer seja no âmbito acadêmico, quer seja no exercício da judicatura.
São Paulo, 15 de Agosto de 2022.
Evandro F. Capano, Fernando F. Capano e Luciana Pascale Kühl”